
“A cidade é produzida dentro de uma lógica excludente”
Professor de Arquitetura da Unesp, Estevam Vanale Otero analisa a lógica de planejamento urbano das cidades brasileiras e lembra que Bauru foi uma das primeiras do Estado a ter condomínio fechado.
Por Isabela Paulino e Priscila Campolim
Bauru, como tantas outras cidades brasileiras, enfrenta os desafios de um planejamento urbano marcado pela exclusão social e pela segregação espacial. Para entendermos as raízes desses problemas, convidamos o Professor Estevam Vanale Otero, arquiteto e urbanista da UNESP, para uma análise da dinâmica urbana bauruense.
Com trajetória acadêmica que inclui pós-doutorado na FAU-USP na área de Planejamento Urbano e Regional, o pesquisador traz vasta experiência tanto na academia quanto na prática profissional. Seu olhar crítico sobre o desenvolvimento urbano é enriquecido por anos de atuação no Instituto de Pesquisas e Planejamento de Piracicaba, onde pôde vivenciar de perto os desafios e complexidades do planejamento e gestão urbana.
Está atualmente envolvido em projeto do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) - Produção da Casa e da Cidade, que busca aprofundar o entendimento sobre a produção do urbano no Brasil contemporâneo, explorando as intrincadas relações entre Estado, mercado e sociedade em um contexto marcado pela dominância financeira. Sob sua orientação, este projeto promete lançar luz sobre questões que permeiam a produção do espaço urbano, contribuindo para um futuro mais justo e inclusivo para as cidades brasileiras.
Nesta entrevista, o professor compartilha suas reflexões sobre os desafios do planejamento urbano em Bauru, destacando a importância do engajamento social e político na construção de cidades mais equitativas e sustentáveis. Ao mergulhar nas complexidades do desenvolvimento urbano, ele nos convida a repensar não apenas o espaço físico que habitamos, mas também as relações sociais e econômicas que o moldam.

Otero destaca que mercado imobiliário tem influência decisiva na construção da política urbana. Foto: Isabela Paulino
Quais são os principais desafios do planejamento urbano de Bauru, considerando aspectos como mobilidade, sustentabilidade, inclusão social e desenvolvimento econômico?
O que a gente tem que entender é que Bauru, assim como todas as cidades brasileiras, por um lado é reflexo dessa sociedade, e por outro reproduz essa sociedade. E o que é a sociedade brasileira? É profundamente desigual, violenta. Então, ela carrega esses problemas, é lógico que a cidade ia ser igual. Ela vai ser reflexo disso e ao mesmo tempo vai reproduzir isso. O que é a nossa cidade? Bauru, e as cidades brasileiras de um modo geral, é uma cidade segregada, uma cidade excludente. E esse padrão de urbanização que temos nas nossas cidades vai ter uma série de impactos. Não vou discutir os desafios para Bauru, porque é um desafio para todas as cidades brasileiras. Uma cidade que foi produzida, principalmente, a partir da segunda metade do século XX segregando as classes sociais, baseada na mobilidade por automóvel individual, altamente predatória com o meio ambiente, predatória com a força de trabalho. O trabalhador sem alternativa, sem ter onde morar, nem seu salário era capaz de acessar a mercadoria habitação no mercado formal, nem tinha política pública ou habitacional para oferecer essa moradia. Grande parte da população brasileira vai ter como alternativa o loteamento clandestino, loteamento precário, a favela como alternativa o loteamento clandestino, loteamento precário, a favela. Favela, que vai acontecer invariavelmente, em áreas ambientalmente frágeis, à beira de córrego, que expõe essa população a uma série de riscos e tem total impacto ambiental. A cidade é produzida dentro de uma lógica excludente. Bauru não conseguiria ser diferente.
A própria cidade é uma mercadoria,
o espaço urbano é uma mercadoria.
Afinal, o que é planejamento urbano? E qual a importância do plano diretor da cidade neste processo?
O planejamento vai surgir como disciplina, como uma resposta para os problemas da cidade industrial. As cidades vão crescer a partir da Revolução Industrial, que começa a ter um processo de urbanização real e planetário. Isso, no Brasil, vai se consumar só no século XX, principalmente na segunda metade do século. O Brasil vai incorporar muitas dessas discussões que vêm de fora, mas o planejamento urbano vai surgir na França e na Inglaterra como uma disciplina para enfrentar os problemas que eram resultados da urbanização. Com problemas até similares: encortiçamento, pobreza, miséria, baixa qualidade de vida. Então, o planejamento vai tentar dar conta disso. Por meio de uma série de instrumentos, orientando política urbana, fazendo planos de ordenação urbana, ação do Estado no território efetivamente com política habitacional. O plano diretor brasileiro é o responsável por garantir o bom ordenamento da cidade, por enfrentar os desequilíbrios produzidos por essa urbanização capitalista. Ele [planejamento urbano] é uma atribuição do Estado, a peça máxima. E o que estabelece a legislação que vai ordenar o território é o plano diretor, esse plano opera num contexto de grandes interesses. A própria cidade é uma mercadoria, o espaço urbano é uma mercadoria. Ele [plano diretor] deve regular a produção dessa mercadoria de modo a equilibrar a sua oferta para todo mundo ter acesso. Mas a gente está falando de poderosos interesses econômicos. Aí que o plano diretor tem seus entraves, porque ele não consegue encarar esses grandes interesses econômicos que se manifestam na escala local. O planejamento é importante e necessário, nenhuma das cidades que equacionaram suas questões o fizeram sem planejamento e sem atuação estatal.
Historicamente, como se deu este processo de urbanização em Bauru? E a construção do plano diretor?
A exemplo de muitas outras cidades brasileiras na urbanização, Bauru também é excludente e segregadora. Se a gente olhar o território de Bauru, observamos muito claramente que tem uma clivagem sócio territorial, ou seja, uma concentração dos setores de mais alta renda na porção centro-sul e uma distribuição das populações de baixa renda pelas periferias no norte-leste. Essa região que, não por acaso, foi a que mais recebeu investimentos da política habitacional, seja da Cohab Bauru ou Minha Casa Minha Vida num período mais recente, que abriga essa população de baixa renda. Bauru tem essa característica, a mesma que encontramos em outras cidades do interior de São Paulo com o mesmo padrão.
Por que o planejamento urbano nas áreas periféricas é tão precário?
Uma distinção importante: o planejamento urbano vai saber da legislação e o que deve ser feito, mas é a política urbana que vai operar o orçamento. Por que a periferia não tem o mesmo padrão urbanístico das áreas de alta renda? Porque ela tem muito menos peso político para definir a aplicação do orçamento. Então, basicamente é uma disputa pelo orçamento público. Por que a periferia é precária? Porque ela recebe menos investimentos do que as áreas de alta renda. Essa é a história da urbanização brasileira.
Quais as causas estruturais dessa precariedade e como superá-las?
É uma questão de prioridade. Precisa-se investir onde tem mais carência de equipamentos. Agora, o que todo prefeito e toda cidade faz quando chega no período eleitoral, é recapeamento nas áreas de alta renda, à exemplo de São Paulo e outras cidades pequenas. A gente está vendo exatamente a mesma coisa aqui. Como mudar isso? Redefinir o que é a prioridade, mas o que a gente vê não é isso.
Qual o papel dos conjuntos habitacionais, como o Mary Dota, no planejamento urbano da cidade?
Todos os países que equacionaram a sua questão habitacional fizeram por meio de política estatal com graus elevados de subsídios. O Brasil, historicamente, não tinha o subsídio na política habitacional. Não tinha, no BNH e na habitação da Cohab. Só foi ter subsídio no Minha Casa Minha Vida, a faixa 1 que é intensamente subsidiada. O Mary Dota é um ótimo exemplo de um mega conjunto da Cohab Bauru. O que a gente percebe é que ela [política habitacional] vai implantar esse empreendimento para uma população de baixa renda nas áreas periféricas. Não se consegue superar a segregação a partir dessa política, pelo contrário, ela reforça qual é o lugar de cada um no território. A política habitacional veio reforçar o que é área de pobre e o que é área de rico em nossas cidades. O caso do Mary Dota é exemplar disso.
Quais estratégias podem ser implementadas para integrar as áreas periféricas à dinâmica urbana de Bauru, para promover a inclusão social?
É justamente a questão da política pública. Precisa-se investir e garantir que essas áreas tenham equipamentos, infraestrutura, lazer e acesso a emprego. Porque se a gente observar, essas periferias são áreas que não têm postos de trabalho, então essa população tem que se deslocar até o trabalho. Portanto, gerar emprego e renda distribuída na cidade é uma estratégia para essa inclusão. É a ação estatal que vai garantir que isso seja equacionado.
Não dá para transformar a cidade
sem transformar a sociedade brasileira.
A intenção de “cercar” as casas e apartamentos, muitas vezes, é defendida pela ideia de segurança e qualidade de vida. Como esse processo tem afetado Bauru?
Bauru foi uma das primeiras cidades do estado a ter condomínio fechado. Isso tudo vem de um discurso da insegurança, um discurso sobre a violência, que vai defender esse enclausuramento como uma defesa contra a violência que está no espaço público. Discurso que muitas vezes é falacioso. Muitas cidades têm essa explosão de condomínios fechados em momentos com índices baixíssimos de violência. Ou seja, essa sensação de insegurança já estava colocada. E isso tem muito marketing envolvido. Essa condominização passa por uma construção ideológica, passa por uma questão de conferir status. O loteamento fechado é mais valorizado que o aberto. O que tem influência de status, medo e questões mercadológicas. Essa condominização passa por uma construção ideológica, passa por uma questão de conferir status. O loteamento fechado é mais valorizado que o aberto. O que tem influência de status, medo e questões mercadológicas.
E quais são os impactos da condominização na dinâmica urbana?
Ela fragmenta a cidade, torna os percursos maiores, ela isola a população que não tem mais contato no espaço público. Ou seja, a condominização é bastante danosa, porque cria fragmentos de cidade que não se relacionam entre si.
Como a área de arquitetura e urbanismo observa esse movimento de exclusão de certas classes sociais por meio da ocupação do espaço urbano?
Esse é um processo histórico. Essa segregação é o que caracteriza nossas cidades. Isso não é recente, é um problema. Claro que tem várias perspectivas nesse estudo sobre o urbano. Eu venho de uma linha de uma leitura crítica dessa urbanização. Agora, ela não é um problema que é da cidade. A cidade é o reflexo da sociedade que ela reproduz. Uma sociedade que é totalmente desigual produz uma sociedade desigual. Então é o processo que se retroalimenta. É evidente que isso é uma tragédia, mas ela não acontece no vácuo. Ela acontece quando exprime o espaço que essa cidade está criando. Essa é a nossa tragédia. Não dá para transformar a cidade sem transformar a sociedade brasileira.
Em relação as soluções de planejamento urbano: quais exemplos o senhor considera relevantes, adotados por cidades brasileiras de porte similar a Bauru? E que podem ser inspiradores para o município?
É sempre muito difícil falar “a gente compra esse exemplo…”, porque são sempre realidades e contextos históricos diferentes. Mas, de certa forma, por exemplo, nos anos 60/70 Curitiba implantou um sistema de transporte coletivo integrado à política urbana que criou a estrutura em que a cidade funciona hoje. Curitiba associou o transporte de média capacidade, como os corredores de ônibus, com a verticalização urbana. A cidade só tem prédios perto de ponto de ônibus e as pessoas circulam de ônibus. Quando Curitiba fez isso, ela tinha um porte muito parecido com o de Bauru hoje, porém, essa é uma construção de mais de 50 anos. Para ter um resultado, precisa começar. Bauru consegue fazer esse diagnóstico porque o que não falta para Bauru são diagnósticos. É muito difícil falar em bons exemplos, mas é curioso que Curitiba quando tinha o tamanho similar a Bauru criou uma opção, a questão é qual opção Bauru quer criar. O melhor processo seria entender o porquê Bauru não prioriza o transporte coletivo, porque não protege suas áreas ambientalmente frágeis, aí talvez a gente tenha a resposta.
É uma questão de
prioridade.
Quais diagnósticos você faz de Bauru?
Nosso grupo de pesquisa vem há um tempo estudando várias cidades de perfil similar a Bauru. O que é intrigante é perceber que, ao analisarmos Bauru junto com São José do Rio Preto, São José dos Campos, Sorocaba, Piracicaba, Indaiatuba, entre outras, encontramos muitas similaridades. Não é apenas Bauru que enfrenta esses desafios, mas várias outras cidades na mesma categoria. O curioso é o porquê essas cidades compartilham tantas características em comum. São os mesmos problemas, a favelização e a condominização. Essa lógica é a que temos que enxergar. Se a mesma cidade está se reproduzindo em contextos tão diferentes é porque tem uma lógica estruturante da nossa sociedade que se rebate no território produzindo isso.

