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No meio do “mercado da fé”,
havia um pastor militante

 Progressista e aliado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Maykel Nazaré conduz cultos pautados em questões sociais e comenta sobre resistir em cenário conservador

Por Isabela Giro e Jhennyfer Lima

Um discurso alto ecoa rua afora. A assembleia de fiéis entoa sussurros de orações ritmadas, enquanto  uma figura de terno escuro e gravata se ergue no palanque de madeira. Tem uma das mãos apontada para o céu e a outra agarra um livro pesado. Ele conduz a congregação tal como um maestro guia sua orquestra. Olhos fechados, mãos ao alto e pedidos silenciosos preenchem o ambiente designado ao sagrado. 

Essa poderia ser uma cena comum numa igreja evangélica em qualquer lugar do Brasil. Entretanto, não se assemelha à dinâmica do  culto da chamada “Igreja do Amanhã”, realizado no Armazém do Campo, no centro de Bauru, espaço mantido pelo Movimento dos Sem Terra (MST).

É lá que o pastor Maykel Nazaré conduz encontros dominicais. Os fiéis se reúnem em roda de conversa, todos em pé de igualdade, sem um palanque para os hierarquizar. Não existe um sermão propriamente dito, apenas uma discussão sobre “dúvidas de fé”, como o pastor as denomina. O ambiente é descontraído e intimista.

Historicamente, o primeiro contato de Deus com o povo se dá numa disputa de terra.

Ao chegar no pequeno prédio do Armazém do Campo,  são notáveis as pinturas chamativas por trás do portão cinza. O pastor chega para realizar o culto, com a capa do violão em mãos, e libera a entrada para os visitantes. Ele usa uma camiseta preta com a estampa de “Todo mundo odeia o Chris” e uma bermuda verde, que combina  com a manhã de sol na cidade.

“É muito natural”, afirma Maykel,  sobre ser simultaneamente pastor e militante de esquerda. Ele explica que a interpretação da Bíblia discutida no seu culto é pautada em questões sociais - como a utilização da terra para a sobrevivência- para a compreensão do papel de Deus nessas histórias.

O pastor arruma as cadeiras em um círculo para o culto, porém, apenas um de seus companheiros chega. Outros haviam avisado que não estariam presentes naquele dia, justifica Maykel. O pastor não parece se abalar, mesmo sabendo que aquele poderia ser  um dos últimos cultos sediados no Armazém. O futuro do estabelecimento permanece incerto, em vista do aumento do aluguel do imóvel. O  retorno financeiro das atividades realizadas no espaço não consegue cobrir os custos de manutenção.

Pastor Maykel Nazaré em Armazém do Campo Bauru.

Foto: Jhennyfer Lima

“Historicamente, o primeiro contato de Deus com o povo se dá numa disputa de terra”. Maykel argumenta que no livro de Êxodos, no Antigo Testamento, a figura divina somente aparece nos escritos para repartir terras igualmente ao povo recém liberto de Israel, de forma a garantir que ninguém acumulasse riquezas maiores. A interpretação do pastor do texto bíblico remete diretamente a uma pauta cara do MST, que é a distribuição de terras. 

O avareense de 32 anos cursava Engenharia na UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) quando se envolveu com movimentos sociais. Em 2012, durante uma greve docente que paralisou as universidades federais do país, Maykel foi inspirado a atuar ativamente no cenário político de sua cidade natal (Avaré) e Cornélio Procópio, onde estudava. Nessa época, chegou a participar de uma ocupação na Câmara Municipal de Avaré em protesto ao monopólio de licitação de ônibus por uma empresa da região. A partir desses episódios,  sentiu que sua fé, cultuada desde cedo, convergiu com uma visão política de mundo.

A gente tenta não rodar uma igreja na lógica capitalista e na burocracia como as outras fazem.

“Entendi que a fé também é uma disputa coletiva” , afirma.

Criado em uma cidade conservadora do interior de São Paulo, inicialmente  o posicionamento político de Maykel causou atritos com os pais. Após o divórcio dos dois, aproximou-se mais da mãe, que, eventualmente, compreendia as ideias do filho. Ambos mudaram-se para Bauru e Joana Darc chegou a comparecer algumas vezes ao culto conduzido pelo filho no Armazém do Campo.

“Acho que a grande diferença entre a nossa igreja é que grande parte das outras se considera neutra politicamente e opta pelo caminho da caridade”, diz Maykel . “Mas a gente sabe que é muito mais importante o caminho da política pública para mudar a realidade das pessoas”, completa o pastor.

As  falas de Maykel se alinham aos cartazes e produtos do ambiente onde realizamos a entrevista. Bandeiras da Palestina, homenagens à Marielle e artes com frases marcantes como “Lutaremos! Por nossos corpos e territórios, nenhuma a menos” preenchem a atmosfera do Armazém do Campo. 

Maykel ficou doente durante dois anos e não conseguiu terminar o curso na UTFPR. Quando se mudou para Bauru, procurou  continuar  os estudos de forma conciliada a um trabalho que o sustentasse. Em 2016, abandonou a graduação de Engenharia Elétrica, em uma universidade particular,  para cursar Teologia e, logo em seguida, também se formar em História. Na cidade, chegou a dar aulas em uma escola religiosa e foi pastor em outra igreja antes da atual.

Entendi que a fé também é uma disputa coletiva.

“A gente tenta não rodar uma igreja na lógica capitalista e na burocracia como as outras fazem”, diz .

O culto da Igreja do Amanhã não costuma seguir o modelo tradicional de outras igrejas evangélicas. Isso foi o suficiente para o levantamento de críticas. Por meio de amigos que frequentam outros templos, Maykel já ouviu hostilidades indiretas a seu trabalho. Ele também cita um episódio no qual foi marcado em uma postagem nas redes sociais, cujo conteúdo consistia em repreender a atuação da igreja e suas ideias progressistas. 

“A gente nunca respondeu nenhuma provocação porque a gente entende que esse caminho de ser coletivo, popular, democrático, já é suficiente”.

 O pastor acredita que não existe a necessidade de um consenso acerca da natureza religiosa, apenas espera que possa haver um “consentimento” sobre a existência das diferentes formas de leituras bíblicas.  Ele diz estar ciente  sobre o ambiente conservador da cidade  e destaca não possuir  intenção de participar  de um espaço  tomado por ideais da direita.

Maykel apresenta  naturalidade  ao inserir preceitos bíblicos em meio a conversa. Amor, fraternidade, divisão de bens e respeito mútuo são temas que entrecortam o diálogo. 

Atualmente, além de pastor, ele atua na área da educação em uma empresa de tecnologia. Estar  consciente de sua condição como trabalhador  o faz sentir-se mais próximo do que é discutido dentro dos cultos da Igreja do Amanhã. 

Pra mim, a fé tem muito mais a ver com a dúvida do que com a certeza.

Maykel conta conhecer pouquíssimos pastores que vivem apenas do que recebem na igreja, já que a maioria necessita de, ao menos, um emprego alternativo para se sustentar. 

“Grande parte dos pastores que vivem disso acabam gerando uma demanda financeira de outras pessoas da classe trabalhadora, o que hoje em dia é quase inviável”, declara. “ É bizarro, eles são autônomos da fé”, complementa brincando.

Embora seja historicamente um país de maioria católica, o Brasil tem experienciado nos últimos anos o  crescimento expressivo de seguidores da religião evangélica. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) , por exemplo, houve um salto de 15,4% para 22,2% de evangélicos no país entre os anos de 2000 e 2010. Além disso, segundo levantamento de dados do Ipea (Instituto Pesquisa Aplicada) em 2021, dos 124.529 templos religiosos brasileiros existentes, cerca de 52% são evangélicos pentecostais ou neopentecostais e 11% de evangélicos tradicionais.

Porcentagem das populações de católicos e evangélicos em três décadas

Apesar de convicto  de suas crenças religiosas, o pastor confessa que tem espírito questionador e constantemente entra em embates relativos a sua fé.  

“Pra mim, a fé tem muito mais a ver com a dúvida do que com a certeza”, declara. Nesse momento, suas respostas se tornam mais pausadas, como quem digere  as próprias palavras  internamente.

“A gente [Igreja do Amanhã] faz uma leitura das coisas menos espirituais e mais materiais, porque  vê que a mudança precisa ser material na vida das pessoas”.

Maykel pontua que sentiu mais intensamente o peso dessa condição durante o governo de Jair Bolsonaro, cujos discursos políticos alinhados à extrema direita confrontam claramente com a perspectiva adotada pelo pastor.        

O mercado da fé brasileira é majoritariamente conservador e muita gente que é progressista e cresceu nesse meio não consegue fazer a conexão da sua fé com a realidade.

Sobre possíveis mudanças no caráter conservador da essência do movimento evangélico brasileiro, o pastor demonstra nenhuma esperança em ver mais igrejas como a sua em um plano nacional.

“O mercado da fé brasileira é majoritariamente conservador e muita gente que é progressista e cresceu nesse meio não consegue fazer a conexão da sua fé com a realidade”, argumenta. Ele afirma que houve “um roubo do mercado da fé” dentro dos movimentos sociais brasileiros por parte da ala da extrema direita, o que ocasionou diversos confrontos ideológicos entre pessoas liberais com suas igrejas conservadoras.

“O espaço evangélico brasileiro ruiu; ele é conservador e de direita. Ele nunca vai mudar”, finaliza

Apesar de parecer derrotista, o pastor não deixa de acreditar nas pequenas mudanças que podem ser realizadas no contexto em que atua. Na verdade, ele crê na retomada da fé por pessoas progressistas. Mas argumenta que a falta de recursos materiais e ausência da visibilidade midiática apresentam-se como obstáculos para esse fenômeno.

O espaço evangélico brasileiro ruiu; ele é conservador e de direita.

Ele nunca vai mudar.

“Meu sonho era não ter fé”, brinca, ressaltando como esse estado de conflito interno pode afetar a conexão com a religião. Contudo, ao mesmo tempo,  Maykel diz  não ser  capaz de simplesmente não acreditar em algo.

 “ Eu preciso acreditar que a realidade pode se transformar”.

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